Educação Popular, um jeito especial de
conduzir o processo educativo no setor saúde
Eymard Mourão Vasconcelos
O
Brasil teve um papel pioneiro no mundo na constituição do método da Educação
Popular, o que explica em parte a sua importância, aqui, na redefinição de
práticas sociais dos mais variados campos do saber. Ela começa a se estruturar
como corpo teórico e prática social no final da década de 1950, quando
intelectuais e educadores ligados a Igreja católica e influenciados pelo Humanismo personalista que florescia na Europa no pós-guerra, se voltam para as
questões populares. Paulo Freire foi o pioneiro no trabalho de sistematização
teórica da educação popular. Seu livro Pedagogia do Oprimido (1966) ainda
repercute em todo o mundo.
Educação
Popular não é o mesmo que "educação informal". Há muitas propostas
educativas que se dão fora da escola, mas que utilizam métodos verticais de
relação educador-educando. Segundo Carlos Brandão (1982), a Educação Popular
não visa criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos,
alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e cagando em
fossas sépticas. Visa participar do esforço que já fazem hoje as categorias de
sujeitos subalternos - do índio ao operário do ABC paulista - para a organização
do trabalho político que, passo a passo, abra caminho para a conquista de sua
liberdade e de seus direitos. A Educação Popular é um modo de participação de
agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais, profissionais de
saúde e outros) neste trabalho político. Busca-se trabalhar pedagogicamente o
homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fomentando
formas coletivas de aprendizado e investigação de modo a promover o crescimento
da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das
estratégias de luta e enfrentamento. É uma estratégia de construção da
participação popular no redirecionamento da vida social.
Um
elemento fundamental do seu método é o fato de tomar o saber anterior das classes populares como ponto de partida do processo pedagógico. No trabalho, na
vida social e na luta pela sobrevivência e pela transformação da realidade as
pessoas vão adquirindo um entendimento sobre a sua inserção na sociedade e na
natureza. Este conhecimento fragmentado e pouco elaborado é a matéria prima da
Educação Popular. Esta valorização do saber popular permite que o educando se
sinta "em casa" e mantenha a sua iniciativa. Neste sentido não se
reproduz a passividade usual dos processos pedagógicos tradicionais. Na
Educação Popular não basta que o conteúdo discutido seja revolucionário se o
processo de discussão se mantém vertical.
Enfatiza-se não o processo de transmissão de conhecimento mas sim a ampliação dos espaços de
interação cultural e negociação entre os diversos atores envolvidos em
determinados problemas sociais para a construção compartilhada do conhecimento e
da organização política necessários à sua superação. Ao invés de procurar
difundir conceitos e comportamentos considerados corretos, procura-se problematizar o que está incomodando e oprimindo fazendo uso da discussão aberta.
Prioriza-se a relação com os movimentos sociais por serem expressão mais elaborada dos interesses e da lógica dos setores subalternos da sociedade cuja voz é usualmente desqualificada nos diálogos e negociações. Apesar de muitas vezes partir-se da busca de soluções para problemas específicos e localizados, procura-se partir da perspectiva de que a atuação na microcapilaridade da vida social é uma estratégia de desfazer os mecanismos de cumplicidade, apoio e aliança dos micropoderes que sustentam as grandes estruturas de dominação política e econômica da sociedade. Está, pois, engajada na construção política da superação da subordinação, exclusão e opressão que marcam a vida na nossa sociedade.
Prioriza-se a relação com os movimentos sociais por serem expressão mais elaborada dos interesses e da lógica dos setores subalternos da sociedade cuja voz é usualmente desqualificada nos diálogos e negociações. Apesar de muitas vezes partir-se da busca de soluções para problemas específicos e localizados, procura-se partir da perspectiva de que a atuação na microcapilaridade da vida social é uma estratégia de desfazer os mecanismos de cumplicidade, apoio e aliança dos micropoderes que sustentam as grandes estruturas de dominação política e econômica da sociedade. Está, pois, engajada na construção política da superação da subordinação, exclusão e opressão que marcam a vida na nossa sociedade.
No
campo da saúde, a Educação Popular tem sido utilizada como uma estratégia de
superação do grande fosso cultural existente entre os serviços de saúde e o
saber dito científico de um lado e a dinâmica de adoecimento e cura do mundo
popular de outro. Atuando a partir de problemas de saúde específicos ou de
questões ligadas ao funcionamento global dos serviços, busca entender, sistematizar
e difundir a lógica, o conhecimento e os princípios que regem a subjetividade
dos vários atores envolvidos, de forma a superar as incompreensões e
mal-entendidos ou tornar conscientes e explícitos os conflitos de interesse. A
partir deste diálogo, soluções vão sendo delineadas. Neste sentido, tem
significado não uma atividade a mais que se realiza nos serviços de saúde, mas
uma ação que reorienta a globalidade das práticas ali executadas, contribuindo
na superação do biologicismo, autoritarismo do doutor, desprezo pelas
iniciativas do doente, de seus familiares e por fim superação da imposição de soluções técnicas
restritas para problemas sociais globais que dominam na medicina atual. É,
assim, um instrumento de construção ação de saúde mais integral e mais adequada
à vida da população.
Educação
Popular é o saber que orienta nos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da
ação pedagógica voltada para a apuração do sentir/pensar/agir dos setores
subalternos para a construção de uma sociedade fundada na solidariedade,
justiça e participação de todos.
Formar bons lutadores pela saúde (Sales, 1999)
Todas as pessoas, pelo que fazem ou deixam de fazer, interferem no sentir/pensar/agir de outras pessoas. Por isso todas as pessoas são educadoras. É nesse sentido que se diz que toda relação é, necessariamente, uma relação pedagógica. Para o setor saúde o papel dos pais, principalmente da mãe, é fundamental na formação do saber sanitário.
Algumas
pessoas têm a função de educadoras. São as pessoas que por opção, por
exigência da profissão ou porque para tal foram eleitas, dedicam-se à
formação de outras pessoas nas escolas, igrejas, associações, cooperativas,
sindicatos, partidos e nos serviços de saúde. São profissionais da educação.
Para elas, o modo de condução do processo educativo deixa de ser intuitivo ou
merecedor de poucas reflexões para se tornar um problema importante que precisa
ser discutido e aperfeiçoado continuamente.
Outras
pessoas, além de educadoras, são especialistas em Educação. Nesta categoria
está quem se dedica a conhecer a história, as teorias e as metodologias da Educação, a articulação da dimensão educativa com os objetivos econômicos e
políticos, os indicadores de eficácia da atuação educativa, os critérios de
avaliação e reorientação da prática educativa e o que mais diga respeito à
produção, transmissão, reprodução de saberes. Atuam, principalmente, assessorando
outros educadores.
A
reflexão educativa tem enfatizado muito a questão da transmissão de
conhecimentos. Insiste bastante na dimensão intelectual da educação e dá pouca
ênfase à sua dimensão afetiva e prática. Mas quem não sabe da influência dos sentimentos, paixões e afetos sobre o pensar e o agir de todos nós? Quem não
sabe igualmente da influência do pensar sobre o sentir e agir das pessoas? E
não sabe como o agir cria e recria modos de sentir e pensar? O pensar, sentir e
agir se combinam de forma particular em cada pessoa resultando ou em sabedoria
ou em idiotice. Em um modo de atuar firme, tranquilo e coerente ou em um modo
de atuar confuso, incoerente e inseguro. É importante, portanto, ressaltar que
a educação tem como objeto e instrumento o saber, o sentir, o pensar e o agir.
Educação
é formação não somente informação. É o aprofundamento (mas pode
ser também a imbecilização) do sentir, pensar e agir. Educação
é a formação de pessoas mais sabidas. É a busca do equilíbrio e aprofundamento
dos sentidos, das emoções, dos conhecimentos e da atuação. Ser mais sabido é
bem mais do que ser mais erudito. Se é impossível ser sabido sem ter
conhecimentos e informações, é bem possível ter muito conhecimento e não ter
sabedoria. O indicador do resultado educativo que aqui se pretende não é,
portanto, a erudição. É situar-se bem no contexto de interesse. É usar armas adequadas
nas lutas por objetivos econômicos, políticos, culturais, afetivos, religiosos
e sanitários. É serenidade no modo de lutar.
Educação
Popular é um modo especial de conduzir o processo educativo que tem uma
perspectiva: a apuração, organização e aprofundamento do sentir, pensar e agir
das diversas categorias de sujeitos e grupos oprimidos da sociedade, bem como
de seus parceiros e aliados. Nela, a apuração, aprofundamento e organização do
sentir, pensar e agir são partes centrais da construção de uma sociedade solidária
e justa através da superação das estruturas sociais que reproduzem a injustiça
e a exclusão, desta forma as pessoas não são encaradas mais como mercadorias que se
compra ou rejeita.
Em
síntese a Educação Popular é a formação de pessoas mais sabidas e mais fortes
para conseguir melhor retribuição à sua contribuição econômica, política e
cultural; mais sabidas e mais fortes para serem tranquilas, sadias e felizes e
para terem uma convivência construtiva e preservadora com o meio ambiente
físico e humano.
A
prática educativa que se contrapõe à prática da Educação Popular é a prática de formação de pessoas e trabalhadores submissos, dilacerados, sem auto-estima,
sem altivez, inseguros e sem esperança, é a que prepara pessoas para explorar e
dominar outras pessoas e a natureza em geral, é a prática educativa que ajuda
os atuais detentores do poder político, econômico e cultural a serem mais
espertos e sabidos nas suas relações de exploração e dominação.
Alguns
teóricos, equivocadamente, chamam de Educação Popular a qualquer atuação
educativa de órgãos governamentais ou civis, junto aos pobres, nos campos da
alfabetização, habitação, saúde, transporte, segurança, organização
comunitária, entre outros, mesmo que esta educação tenha a perspectiva de entorpecê-los
e acomodá-los. Neste caso, trata-se de uma educação antipopular
ousada por se realizar no próprio espaço físico do povo, contra os seus
interesses. A palavra popular presente no conceito de Educação Popular,
refere-se, portanto, não ao público do processo educativo mas a sua
perspectiva política: estar a serviço da realização de todos os interesses dos
oprimidos desta sociedade, na maioria das vezes pertencentes às classes
populares, bem como de seus parceiros, aliados e amigos.
Há
também teóricos que só consideram Educação Popular a prática educativa que
acontece fora do espaço formal e institucional. Observa-se que tanto é possível fazer
Educação Popular nos espaços institucionais, sejam governamentais ou
empresariais, quanto também fazer educação antipopular em espaços populares
alternativos.
A
Educação Popular exige um modo específico de conduzir as ações educativas para formar pessoas mais sabidas e criar relações sociais mais justas. Uma das
exigências é deixar claro para os educandos os objetivos de cada ato educativo,
para que eles, conhecendo sua intencionalidade mais geral possam ser críticos
e se situar diante de cada um de seus passos.
Não
é coerente com a perspectiva da Educação Popular quem não toma em consideração os conhecimentos,
experiências, expectativas, inquietações, sonhos, ritmos, interesses e direitos
das pessoas com que se esteja convivendo. Nesse sentido, é fundamental tomar em
consideração marcas tão profundas como as de gênero, geração, etnia e religião para aprofundar num processo de intercâmbio de saberes.
Não
é também coerente quem impõe objetivos, conteúdos, palavras de ordem e
verdades. Neste ponto, a Educação Popular rompe com a tradição da educação
política das esquerdas que investem principalmente na difusão para as massas das
verdades da vanguarda iluminada que teria conseguido superar a ideologia
burguesa que alienaria a maioria dos trabalhadores.
Todas as técnicas e todas as dinâmicas que facilitam a aprendizagem são
metodologias de Educação Popular a fim de auxiliar os educandos a apurarem o que
precisam e a posicionarem-se a lutar pelos interesses em
todas as situações que lhes digam respeito. Neste sentido, a Educação Popular
se preocupa menos com discussão das técnicas educativas e mais com o
significado político para o grupo a que se destina.
Educação
Popular não é veneração da cultura popular. Na formação de pessoas mais sabidas devem ser criadas oportunidades de
intercâmbio de culturas e assim as pessoas mudarão quando desejarem mudar e quando
tiverem condições objetivas e subjetivas de optar por um outro jeito de viver.
Certamente a Educação Popular não pretende formar pessoas mais sabidas quem tentam impor uma
cultura pretensamente superior. Mas também é muito conservador quem, desejando
preservar um modo popular idealizado de viver, deseja parar o mundo, privando
as pessoas e grupos do contato com outras pessoas e grupos portadores de marcas
biológicas e culturais diferentes e, por isso mesmo, enriquecedoras. Ao
educador popular caberá o investimento na criação de espaços de elaboração das
perplexidades e angústias advindas do contato intercultural, denunciando
situações em que a diferença de poder entre os grupos e pessoas envolvidas
transforme as trocas culturais em imposição.
Educação
Popular é, portanto, um modo comprometido e participativo de conduzir o
trabalho educativo orientado pela perspectiva de realização de todos os
direitos do povo, ou seja, dos excluídos e dos que vivem ou viverão do
trabalho, bem como dos seus parceiros e aliados. Nela investem os que creem na
força transformadora das palavras e dos gestos, não só na vida dos indivíduos,
mas na organização global da sociedade.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Lutar com a
palavra. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 6 ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
SALES,
Ivandro da Costa. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar. In:
Scocuglia, A.(org.). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora
Universitária da UFPB, 2001, p.111-122.
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